Uma das montanhas mais emblemáticas e incríveis do Brasil, conquistada heroicamente em 1947, considerada até hoje uma montanha difícil, passa a ser alvo de pessoas completamente leigas, com o advento de uma via "ferrata".
O ano: 1947. O Brasil ainda engatinhava no montanhismo, apesar de já contar com importantes conquistas em território nacional. Os equipamentos eram arcaicos, as técnicas, incrementadas à base de muito suor, tentativas e erros. As escaladas mais complexas, tornavam-se epopéias. Ainda assim, cinco bravos escaladores (chamados "lagartixas" à época), do Centro Excursionista Rio de Janeiro (CERJ), se aventuraram por nada mais, nada menos que 16 dias, em extenuante trabalho nas paredes verticais do colosso de granito, para que o cume fosse atingido pela primeira vez.
Índio do Brasil Luz, Sílvio Joaquim Mendes, Reinaldo Behnken, Júlio Maria de Freitas e Reinaldo Santos haviam não apenas conquistado a primeira via de escalada do Espírito Santo, como também, criaram a via que foi considerada por algumas décadas, a mais difícil do Brasil.
A montanha voltaria a receber uma nova via em 1960, desta vez, por um grupo formado de escaladores do Clube Excursionista Carioca (CEC), na figura do lendário Patrick White, Gilberto Neves Pimentel e Mauro Villela de Andrade. Foi uma via inovadora, na qual houve a utilização de pitons pela primeira vez no país, assim como, ao longo de seus 320 metros, apenas oito proteções fixas foram colocadas, tornando-a uma escalada limpa e comprometida. Nomeada de "Chaminé Cachoeiro", esta é uma via bastante desafiadora e que, até hoje, assim como sua precursora, recebeu pouquíssimas repetições com sucesso.
A montanha ainda receberia três outras vias, em 1999 ("Face Nordeste" D6 6º VI A2+ E3 - 320m - por Luciano Bender, Marcel Leoni, Magno Santos e Leandro Siquiera "Bidu"), em 2003 ("Tudo Rápido" 6º VIIa A2 e2 - 110m, por André Kühner, Fernando Sabioni, Adriana Mello, José Carlos e Gabriela Saliba) e em 2005 ("Chaminé Edilso Debarba", por Oswaldo Pereira e cia). Todas consideradas escaladas tradicionais, clássicas e conquistadas da forma mais limpa possível.
Minha história com o Pico do Itabira começou em 2002, quando escaladores do Centro Excursionista Brasileiro (CEB) comentaram sobre duas tentativas anteriores de escalar a via de conquista, sem sucesso. Quando o convite me foi feito, o aceite veio antes mesmo do cérebro processar a informação. Bastou apenas uma rápida olhada em uma das fotos daquela belíssima montanha, para ter certeza absoluta de que eu deveria tentá-la.
No final de abril de 2003, aproveitando o feriado do dia primeiro de maio, eu, Zozimar "Menudo" Moraes e Egito, rumamos para Cachoeiro de Itapemirim, munidos de 200 metros de cordas e demais ferragens, para a empreitada. Contamos também com um artifício criado pelo Antonio Dias, que não pôde nos acompanhar, carinhosamente apelidado de "Pau do Antônio". Nada mais era do que um "clip stick" rústico, essencial para o trecho de artificial em pés de galinha, na parte inicial da escalada.
Foram três dias de puro sofrimento, com todo o trabalho de fixação de cordas, artificiais, calor, peso, câimbras e incertezas. A opção de encordar a parede e dormir na base parecia interessante, mas logo descobrimos que a energia e tempo desprendidos era tamanha, que o ideal seria ter dormido na parede. Mesmo com tudo isso, tivemos êxito em atingir o tão sonhado cume! A descida foi feita sob um temporal de dar medo, o que nos fez chegar de volta ao acampamento base completamente esgotados e imundos! Lembro-me de ver o Egito tão desnorteado, que ele simplesmente entrou na barraca totalmente enlameado e dormiu até o dia seguinte!
Ainda com intenção de levar o Antonio Dias ao cume, idealizador das primeiras tentativas, eu, Menudo e Egito concordamos em voltar uma vez mais para a montanha, ainda em 2003. Desta vez, no mês de outubro. A estratégia seria subirmos leves, de forma rápida, dormir no cume e descer no dia seguinte. Como fomos ingênuos...
A subida foi penosa, mesmo já conhecendo bem o terreno. Basicamente, eu subia guiando, rapelava, pegava minha mochila e subia utilizando cordeletes com prussik. Em determinado momento, o Antonio começou a sentir câimbas, o que me obrigou a realizar uma descida e ascensão a mais, a cada enfiada, para carregar os pertences dele. Com isso, o horário foi avançando e, por volta das 19h, ainda estávamos nesta logística, escalando no escuro, completamente esgotados. Decidimos passar a noite em pequenas moitas que encontramos, ainda em terreno bem vertical, mas sem chegar ao cume. Foi uma noite tensa, haja vista não termos nenhuma proteção fixa no local e não conseguirmos proteger nada em móvel. Nossa sustentação foi feita em pequenos arbustos bem duvidosos, conferindo uma das piores noites que já passei na montanha!
No dia seguinte, finalmente atingimos o cume e comemoramos demais a empreitada! O rapel foi feito sem maiores problemas, embora represente uma parte árdua, por conta das poucas proteções na parte superior, além de contar com diversas horizontais e lances com vegetação. Ao chegar na base, juramos a nós mesmos que jamais voltaríamos naquele cume!
Ledo engano.... Já em 2004, eu, Menudo e Egito resolvemos abraçar o desafio de fazer a Chaminé Cachoeiro. Afinal, não poderia ser pior que a via de conquista, certo? Errado!
Trata-se de uma via muito, mas muito bonita. Entretanto, ela possui várias "pagadinhas", a iniciar pelos dois pêndulos para acessar a segunda e terceira chaminés. Depois, além de lances tecnicamente complexos, há um sem número de trepadeiras e arbustos, estrategicamente posicionados nos piores lances, tampando o caminho com uma resistência enorme. O esforço para passar por estes trechos é desumano!
No primeiro dia, encordamos a parade para além dos pêndulos e voltamos para dormir em uma pousada local. No segundo dia, Egito se sentu tão confortável na pousada, que resolveu ficar na piscina, tomando cerveja, com uma visão privilegiada do Pico do Itabira, enquanto eu e Menudo retomávamos os trabalhos. Chegamos no cume por volta das 14h, dando de cara com o "Pau do Antonio", que havíamos deixado no cume, desde a investida anterior. Missão cumprida (e comprida)! Rapelamos pela Face Nordeste, via com menor extensão e com negativos bem impressionantes. Ao menos, a descida ocorreu de forma rápida e sem nenhum contratempo. E desde então, de fato, jamais voltamos por lá, embora haja uma certa vontade em repetir a dose...
Eis que, em pleno ano de 2020, com tamanha evolução nos equipamentos de escalada, em uma época na qual a ética e as boas práticas são o norte para qualquer pessoa que se diga montanhista, recebo a triste notícia que uma via "ferrata" foi aberta no Pico do Itabira.
A realização deste feito só pode ser definida como uma agressão à montanha. Uma agressão à toda sua história, à todo o suor e bravura daqueles que se prepararam para galgá-la da forma mais limpa e honesta possível. Não se trata de um ponto turístico, mas sim, de um marco no montanhismo brasileiro, que foi manchado sem qualquer escrúpulo.
Uma montanha deste nível requer treinamento, tanto técnico, quanto psicológico e físico. Exige planejamento meticuloso. Aqueles que desejam sucesso em atingir o cume, precisam elevar seu nível e enfrentar os desafios impostos, com total direito ao risco, amplamente pregado pelo montanhismo, desde os seus primórdios, desde que o praticante os entenda e os aceite.
Uma via "ferrata" em um ambiente como este, vem com consequências inimagináveis, podendo ser pontuado em primeira instância: 1) Este tipo de via, além de toda a técnica exigida, demanda enorme manutenção, o que provavelmente não será realizado, deixando os padrões de segurança abaixo do aceitável; 2) Pessoas leigas irão tentar esta subida, sem a capacitação necessária, por vezes, guiadas por pessoas que visam apenas o lucro. Uma receita pronta para desgraças; 3) Para a linha contínua que foi aberta, quantidades enormes de vegetação rupestre foi violentamente arrancada da parede; 4) O estilo da via fere completamente o estilo adotado nas demais conquistas desta montanha, representando uma obominação visual e estética; 5) Esta linha passa a pouquíssmos metros de duas linhas icônicas na parede (a Face Nordeste e a Ch. Cachoeiro), empobrecendo a experiência daqueles que as escalam; 6) Trata-se de um completo desrespeito para com a história do Pico do Itabira, referência nacional em termos de escaladas de aventura, pioneirismo e complexidade; e 7) A região conta com outras inúmeras opções de caminhadas e escaladas para outros pontos de interesse com níveis técnicos mais acessíveis,
Historicamente, temos a maior quantidade de acidentes nacionais (muitos deles, fatais), em vias ditas "ferrata", justamente pela falsa sensação de simplicidade. Une-se a isso o fato das escaladas em livre, ou artificial móvel, terem evoluido a tal nivel, que a criação de vias neste formato, hoje em dia, na realidade do montanhismo brasileiro, é algo pouco comum.
"Mas na Europa existem várias vias ferratas...". Sim, entretanto, há de se considerar que não estamos na Europa. Os padrões de vias ferrata no exterior são bem distintos dos que são apresentados por aqui, seja por "economia" (pura e crua), seja por falta de conhecimento técnico. Ademais, existem diferentes montanhas nas quais este modelo é aplicado, ou não. Montanhas "símbolo", com toda história agregada, são eternizadas com as condições pelas quais foram conquistadas, sem apresentarem subterfúgios para a sua ascensão. Não que vias ferratas sejam indesejáveis, mas para tê-las, deve-se entender da história local, ter cuidado em não interferir ética e ambientalmente, além de se utilizar padões condizentes com este tipo de via.
Curiosamente, e infelizmente, meu querido amigo Egito faleceu há uma semana. Neste dia, eu passava exatamente por Cachoeiro de Itapemirim e, da estrada, lembrei-me das aventuras que passamos juntos por lá, antes de saber do seu falecimento. Hoje, sinto alivio em saber que ele não terá a péssima oportunidade de ver aquela bela montanha, repleta de histórias, relegada a um ponto turístico, alvo de pessoas descapacitadas, ávidas por uma simples foto no cume, apenas para ganhar o máximo de curtidas possíveis...
Rogo para que haja um pouco de bom senso naqueles que cometeram esta agressão e que, sabiamente, tomem a decisão de retirar este show de horrores do Pico do Itabira, provavelmente uma das montanhas mais emblemáticas da minha vida. Faço coro ao manifesto de repúdio à construção da escada no Pico do Itabira, criado pela Associação Capixaba de Escalada (ACE).
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