Justamente no ano em que a Federação de Esportes de Montanha do Estado do Rio de Janeiro (FEMERJ) completava seus 20 anos, tivemos a (desegradável) surpresa da pandemia. Mas isso não impediu a realização de uma singela homenagem.
No dia 28 de agosto de 2000, era fundada a FEMERJ. Em 2002, filiou-se à UIAA (União Internacional de Associações de Escalada) e em 2004 foi membro-fundador da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (CBME). Ao longo desta relativamente curta existência, foi responsável por incontáveis ações em pról do montanhismo organizado, participando ativamente de câmaras técnicas e conselhos consultivos em diversas unidades de conservação, participou e apoiou dezenas de manutenções de vias de escalada, colaborou com vários manejos de trilhas, lutou pela preservação ambiental e acesso às áreas naturais, homologou cursos, disseminou a ética e boas práticas do montanhismo, promoveu eventos, seminários, palestras etc etc etc.
Justamente na comemoração dos seus 20 anos, um banho de água fria: pandemia! Nada de encontros presenciais e festividades, no que deveria ter sido a festa do século. Entretanto, o esforço que não foi gasto nesta comemoração, foi revertido em mais e mais ações para o montanhismo, além de sobrar um tempinho para uma conquista pra lá de especial...
Para quem não conhece, o Vale dos Frades é uma região montanhosa que liga a parte alta do Parque Estadual dos Três Picos, em Friburgo, até Teresópolis, muito famosa pela cachoeira homônima e pelas belas trilhas, algumas delas de fácil acesso e beleza cênica incomparáveis, como os Dois Bicos de Sebastiana. Possui também uma grande variedade de escaladas, de diversos graus e, em sua maioria, de grande extensão.
Por já ter conquistado algumas vias na região, como a "Fúria Bovina" (4° Vsup E2/E3 - 130m), a "Viagem ao Centro da Terra" (4° VIIa E2/E3 D2 - 185m) e a "Porta de Entrada" (2° IIIsup E3 D1 - 150m), todas no Contraforte Noroeste do Morro dos Cabritos, já havia dado uma boa mapeada nas paredes do entorno, para novas investidas. E uma delas, foi justamente a enorme parede que se eleva à frente dos famosos Dois Bicos de Sebastiava, na montanha conhecida como Pedra da Sebastiana. Esta parede em específico, já possuia algumas poucas vias, como a espetacular "Castelo de Cartas", mas ainda com uma infinidade de linhas virgens, apenas esperando alguém para escalá-las.
Por ainda estar quase que 100% em isolamento, junto à minha esposa, Laura, a logística para realizar esta conquista foi relativamente complexa, haja vista não querermos realizar absolutamente nenhum contato com outras pessoas, tanto para não nos expormos, quanto para não colocar outrem em risco por uma atividade pessoal nossa.
A primeira investida foi feita no dia 11 de julho de 2020. Saímos de casa na sexta feira, já bem tarde da noite. Fomos direto ao Vale dos Frades, sem paradas pelo caminho. Lá chegando, encontramos um bom recuo na estrada, no qual estacionamos para passar a noite. Sim, dormimos no carro, o que se mostrou bem mais confortável do que imaginávamos, reclinando ao máximo os bancos (do motorista e do carona) e de posse de bons sacos de dormir e travesseiros.
A manhã do dia 11 estava particularmente fria, o que nos fez levantar mais tarde do que o habitual. De todo modo, estávamos bem próximos ao objetivo, o que nos fez relaxar um pouco. Preparamos um bom café da manhã, ao lado do carro, com fogareiros, panelas e tudo que um bom montanhista adora utilizar. Arrumamos os equipamentos com calma e começamos a caminhar (pasmem!) apenas às 10:20h da manhã.
A trilha até base é muito tranquila, seguindo por cerca de uma hora por uma estrada de chão, pegando um pasto apenas nos 10 minutos finais, contendo uma picada muito bem definida, haja vista ser o mesmíssimo acesso à base da "Castelo de Cartas". Decidimos investir em uma linha exatamente à direita desta via, que parecia bem tranquila de início, aparentando também, ser uma via com umas 3 ou quatro enfiadas, no máximo. Ledo engano....
As duas primeiras enfiadas foram conquistadas em poucos minutos. O terreno começa fácil, pouco vertical e com uma aderência impressioante! Saímos da base pouco após às 11:50h e, às 12:35h, já estávamos eu e Laura na P2, nos preparando para conquistar a terceira enfiada. Foi então que percebemos o quão equivocados estávamos, com o tamanho da parede. Neste ponto, foi perceptível que a comparação do que havíamos subido, com o que faltava, mostrava que ainda não estávamos nem perto da metade do trajeto.
Não desanimamos, pois a atividade estava simplesmente sensacional. O dia estava lindo, a vista, magnífica, e a via, muito gostosa. Neste clima, comecei a conquistar a terceira enfiada, na qual os lances mais técnicos começam a surgir. Os lances seguem basicamente por uma sequência de canaletas, horas feitas em micro agarras e cristais, horas em aderência. Tentei deixar a proteção o mais justa quanto possível e em pouco tempo, tínhamos a P3 estabelecida. Laurinha rapidamente se juntou a mim, permitindo o progresso da conquista.
A quarta enfiada continua seguindo as bonitas canaletas, mantendo a graduação constante, na casa do 4º grau, com uma passada ou outra mais fácil, ou mais complexa. Quando estabelecemos a P4, o relógio marcava exatamente 14h. Ainda tínhamos muito tempo para avançar, mas optamos por descer e voltar em uma nova data, com as baterias devidamente recarregadas, para uma investida mais longa. Como dito acima, não havíamos nos programado para algo tão extenso, levando poucas proteções fixas.
Obviamente, a vontade de voltar foi enorme e o fizemos logo na semana seguinte, seguindo o mesmo protocolo de viajar na sexta feira à noite, domindo no carro e atacando a parede ao sábado pela manhã. Desta vez, no dia 18 de julho, acordamos um pouco mais "cedo" e chegamos na base da via às 10:00h. Ao meio dia, já estavamos eu e Laura no mesmo ponto em que havíamos parado na semana anterior.
A quinta enfiada, sem sombra de dúvidas, concentra os lances mais técnicos de toda a via, sobretudo, nos 20 metros iniciais. São lances em aderência, micro agarras e um pouco de concentração e leitura de via, embora bem protegidos. Os lances mais técnicos, ficam na casa do 5º grau.
Depois desta enfiada, a via continua com uma constância interessante, apesar da graduação cair levemente, na sexta enfiada. Enfiada esta, com algumas cristaleiras alucinantes! Depois de passar a P6, a sétima e última enfiada foi bastante "burocrática", apenas para chegar à vegetação da cumeeira, não possuindo nenhum lance delicado, estabelecendo a sétima e última parada às 14:20h. O rapel, com duas cordas, foi feito de forma tranquila e sem contratempos, aproveitando para intermediar vários lances que haviam ficado mais expostos, chegando à base em pouco menos de uma hora após o início da descida.
Esta via foi inteiramente protegida em chapeletas "PinGo" (rapeláveis), possuindo ao menos uma proteção fixa a cada 15 metros, nos lances mais fáceis, com maior quantidade de proteções nos lances mais técnicos. Embora haja a possibilidade de rapelar de uma única chapeleta, recomenda-se a descida com duas cordas de 60m, utilizando as paradas duplas.
Após o término da conquista, eu e Laura estávamos em êxtase! A linha contabilizou exatos 400 metros, em lances simplesmente incríveis e com um visual de cair o queixo. Confesso que não esperávamos uma via tão bonita, quando olhamos a parede de longe, pela primera vez. E, claro, aproveitando a proximidade com a data festiva da FEMERJ, não houve como não homenagear esta entidade tão importante e fundamental para o montahismo fluminense!
Agradecimentos à Laurinha, sempre muito animada e disposta a participar destas "furadas"... Se bem que esta conquista foi feita no modo "light", proporcionando momentos maravilhosos e com pouquíssimos perrengues. Hehehehehe!
Fica a dica para quem quer fugir do ambiente urbano e conhecer uma parede sensacional!
Parabéns a vocês, pela conquista, pela garra, pelo prazer de conquistar, relatar e divulgar suas conquistas, pela valorização do montanhismo! Sucesso sempre.